Fragmentos sobre o movimento

IV





Nota para uma manhã sem memória
em POA:

DEDO:
cada um dos prolongamentos articulados,
das mãos e dos pés

(Houaiss)

nota: O conhecimento de um funcionamento não torna menos surpreendente sua comprovação.


No mais me senti pobre de alma, apaziguado pela planície. Ao caminhar por ela caminhava cada vez mais. Logo que comecei com divagações ruins quis comprar um livro; seria uma distração se a indiferença não me tomasse de modo que eu não fosse capaz de sequer escolher algum na livraria, sendo que o que acabei comprando foi um adesivo de geladeira do F. Pessoa para dar de presente. Ainda fizera a burrice de comprar cigarros de palha caros mais um isqueiro do pior possível por três reais numa tabacaria.

Mais tarde, já era noite, encontrei uma multidão, e digo Multidão, de jovens entupindo a calçada. Desde garotos de treze anos, emos, até manos bebendo tubão, topetudos tocando violão, barbudos roqueiros, todos numa algazarra que congestionava o transito de pedestres por mais de quatro quadras. A coisa ficava mais densa na frente do supermercado que entrei pra fazer compra. Ao sair, a polícia havia espantado um bom número, mas era realmente muita gente, dificilimo de conter. Voltando vi alguns confrontos entre a polícia e eles; logo que a viatura se afastava, voltavam a fechar a calçada. Passou por minha cabeça que podia ser algum tipo de protesto, mas era uma confraternização livre de qualquer preceito, sendo que se não fosse a diversidade de estilos, daria pra pensar num grande show emo ali em volta. Os policiais gritavam com eles, que então começavam a circular deixando visível a má vontade; já uns, empolgados com o grande número, respondiam, e não havia muito o que fazer por parte da polícia. Por vezes vi pequenas perseguições, mas isso parecia quase um detalhe, pois a festa rolava ao ar livre normalmente.

Um temporal tremendo caiu na cidade essa noite. Levanto no frio da manhã esticando os ossos numa tentativa de reviver e me refrescar de ânimo. Me deu dor de cabeça decidir qual seria meu próximo passo na viagem, depois que soube que o Grigolleto iria zarpar de Buenos A. Já na quinta feira de noite, sendo que eu teria então apenas duas noites com teto grátis na capital porteña se saísse imediatamente rumo ao sul. Comprei o bilhete pela Pluma, foram quinze horas até lá.
E foi um passeio pra mim. Eu podia mesmo viver a vida dentro de um ônibus, trêm ou navio, contanto que não pare, que a vista seja uma constante mudança, assim como as correntes de vento.
Nos bancos da frente um homem e uma mulher conversavam em espanhol; uma chica de cabelos morenos (aliás, ouso afirmar que mais de 80 por cento dos hermanos argentinos tem cabelo escuro); o homem era mais velho, eu podia ver o cucuruto careca, como também suas mãos morenas e grandes com que ele aparava as costas da poltrona dele. Primeiros sinais do estrangeiro. As cortinas alaranjadas estavam quase todas cerradas, criando um clima cavernoso colorido. Meia dúzia de chicas de uns dezoito anos riam e sacavam fotos dando gritinhos. Prestei muita atenção nas conversas ao meu redor. No mais me senti pobre de alma, apaziguado pela planície.

Fragmentos sobre o movimento

III

Encostou um cara que ia até Osório ( 80km de POA), mas desconfiei de algo estranho: a mulher no banco do passageiro se inclinava de costas em direção ao banco de trás, numa posição desconfortável. Já me preparava pra recusar a carona quando vi, mesmo pelo insufilme, que a moça não fazia mais do que ajeitar as coisas pra dar lugar a mim. Era uma família; uma menina de uns cinco anos foi comigo no banco de trás. Fiquei acanhado com a situação e falei pouquíssimo a viagem toda, enquanto a criança loirinha me olhava com atenção e desatava a se mexer e falar com os pais sobre a frieira que a incomodava no minguinho do pé, ou sobre como o caminhão era lerdo e a terra era alaranjada. Informação digna de nota é que o nome da coisinha era Gabriela, nome da garota dos meus poemas que andei escrevendo a um mês atrás, e que vinha sendo uma espécie de alter-ego espiritual meu. Foi tão sincera e afetuosa a sensação durante a carona, que resultou num revertério: eu quase mudo o trajeto todo, talvez um pouco nervoso, não sabia o que dizer. Enquanto isso continuavam a conversar normalmente entre eles(Quando se está por demais amortecido e muito dentro de si, a liberdade pode causar sensações esquisitas). O cara tinha o cabelo raso e ruivo, era parrudo, falava baixo e pouco, tinha cara de polaco. Comentou que uma vez havia andado trinta quilômetros na estrada sem conseguir carona alguma.
Projeto falho também o de fotografar todas as caronas. Fico realmente encabulado de pedir uma foto. Me deixaram num pedágio antes de entrar em Osório, na entrada de uma lanchonete de estrada.

Enfim, contente por estar perto de Porto Alegre. A próxima carona foi a que deve ter rolado a melhor conversa, num carro branco de traseira comprida, e mais uma vez alguém pra cima dos quarenta. Esse fora policial militar e fazia muitos anos era bombeiro. Anotei o nome do quartel que ele comanda, fica bem na divisa de SC com RS, chama Quartel Terra de Areia, e disse ele que posso pedir pouso lá quando estiver passando. Me contou também várias histórias de viagens, primeiro a de um japonês de bicicleta que havia pedido pouso no mesmo quartel. Mais tarde, conversando com o sujeito, descobriu que a rota dele se estendia do Alaska até a Terra do Fogo, América de cabo a rabo! E tudo sempre de bicicleta, tendo patrocínios de empresas japonesas. Ainda ia escrevendo um livro durante a viagem, parece que já estivera viajando assim em outras partes do mundo. Descrevendo um pouco essa carona (queria chamar-lhe pelo nome!), mesmo estando sentado, via-se que era baxinho mas forte, do tipo atlético; cabelo quase todo branco, mas seu emblante inspirava saúde. Falava com uma firmeza boa e amigável. O papo fluia bem, via-se que se empolgava por aventuras, mas logo minha mente se cansou e tombei a cabeça no encosto do banco. A certa altura contou que tinha já escrito inteiro um projeto para realizar uma volta completa no estado do Rio Grande pelos bombeiros gaúchos, correndo o trajeto inteiro, e revezando-se em cada corpo de bombeiros pelo caminho. Se não me engano a volta toda duraria trinta dias. Seria um novo récorde no Guiness Book.

Apesar de já estar bem perto de POA, ainda havia 20 Km. Era quatro e meia, sendo que eu já ia pensando o que faria com a noite se aproximando cada vez mais. Demorou meia hora até que finalmente alguém jovem parou, indo trabalhar. Devia ter no máximo 27 anos, rosto bochechudo e redondo, um pouco infantil, olhar atento e divertido; cabelo bem alisado, curto. Vestia roupa de marca, escutava pagodão, além disso, eu já reconhecia o forte sotaque da capital. O carro era novo e ele dirigia muito rápido, mal olhava pra estrada enquanto falava comigo. Mas era um sujeito divertido, se comportava de um jeito bem vivo, nunca demonstrava tédio nas epressões do rosto. Me fez uma barbada, me largou bem perto de onde eu queria, entre o centro e a cidade baixa.

Eu tinha visto na internet que o hotel onde eu ficara da última vez era na Riachuelo e foi assim que orientei a carona pra me deixar num lugar razoável. Mas me enganei, e justo no caminho até a Riachuelo é que encontrei por acaso o tal hotel. O nome é “Casa do Estudante”. Apertei a campainha e ouvi barulho de jogo na tevê. Assim que subi as escadinhas, ouvi um “Ah, agora não!”. Uruguay e Alemanha disputavam o terceiro lugar da copa e o cara da recepção era Uruguaio. Deixei minhas coisas no quarto n25, o penúltimo do longo e estreito corredor do segundo andar, e sai pra dar uma volta, ver ainda o fim do dia na cidade. Caminhei por um longo trecho na Rua Gen. Lima e Silva, na cidade baixa, parando na volta pra comprar comida e tomar um caneco e chopp, até que, enfim no quarto, capotei.

Fragmentos sobre o movimento

II

Acordei antes de nascer o sol, às cinco e meia da manhã, pra arrumar as últimas coisas: desparafusar duas prateleiras da parede, jogar uma montoeira de restos de papel e fita crepe fora. Meu quarto depois que restara apenas minha mochila de viagem ainda não deu a impressão de vazio. Havia ainda sujeira espalhada pelas paredes, heterogenias; uns mofos perto do teto nos pontos que fugiam a luz do sol; pequenos descascados por todo lado, marcas de móveis, e também o que nos faz lembrar solas de sapato. Fiquei com preguiça de tirar uma fita crepe grudada no teto. Lia-se nela: “fantasma de Curitiba III”. Antes havia uma foto logo abaixo, de um santo-mendigo perambulando por Curitiba, agora aquilo parecia coisa de médium ou espírita. Logo depois que vi a fita solitária em cima de mim, olhei pra baixo e percebi um toco de vela, proveniente de uma noite em que minha rua estava sem luz e ao chegar em casa encontrei o apartamento vazio, a boca do fogão ligada derretendo uma pobre cafeteira. Na parede ao lado do toco eu havia anotado uma estrofe do Romanceiro da Inconfidência da Cecília, e só agora tomei consciência de que o tema era explicitamente os mortos, pois antes me pareceu coisa bem mais subjetiva. O último verso: “tudo é sombra de sombras, sem dúvida...”. E meu quarto soava como uma antiga caverna. Ajeitado tudo, percebi que já era seis e meia passada, apesar da falta de luz. Deixei o lixo lá fora, dei última olhada pro prédio e desci a rua. (aos gritos de bichos voadores que habitam Floripa, que especulo, sejam as araras de penas azuis espetadas no rabo que vejo de vez em quando).

Fui chegar no ponto da estrada onde queria bem depois das nove horas, num ônibus que atravessa a Palhoça inteira até um destino que leva o nome de “Formiga”, talvez um município ou morro. Estendi minha placa de cartolina que dizia Porto Alegre à uns bons cem metros do pedágio, bem aonde as faixas se afunilam de volta ao normal. Estava nublado e tudo vazio nos arredores da pista. Do outro lado, o posto da polícia rodoviária federal parecia abandonado, em seguida uma casa de guincho, onde não se via ninguém. Apenas num boteco do meu lado da pista se via umas mulheres, que cortavam batatas. Eu fui lá mijar. Ia ficando tudo num semi-breu quanto mais se adentrava no lugar. Havia um balcão desses com prateleiras superiores, num grande salão. Parecia que faltava bebida nos armários, muitas lacunas entre as garrafas. As duas mulheres eram loiras parrudinhas de uns 30 anos, sorrimos e voltei pra estrada. Acho que demorou em torno de meia hora pra um furgãozinho branco todo arrebentado parar e me levar. Era um senhor de uns 50 anos, mas que a palavra “senhor” lhe soa muito mal: bem magro assim como eu, com jeito de rapaz quando se expressa; na verdade pra mim é difícil descrevê-lo. Entre outras coisas ele me causou impressão semelhante ao meu pai, no jeito melancólico e ao mesmo tempo enérgico que combatem entre si, vencendo uma espontaneidade ingênua, mas bem sofrida, como se só lhe restasse o osso. Eu devia ter anotado o nome de todos os seis que me deram carona nesse dia, pois agora me vem o nome apenas desse primeiro, era Luiz. O cabelo era já grisalho, o rosto cheio de rugas, cansado, onde só sobrou um garoto ou o esqueleto da força de um garoto. Os olhos se arregalavam bem vivos, embora as pálpebras se contraíssem pra baixo, como se aflitas. Ele ia a Criciúma, era um bom trecho.

- Quando vi lá do pedágio, eu disse vou dar carona pra aquele cara, nem sabia quem era, mas ia dar. Me disse isso não sem entusiasmo logo que entrei. Tinha ido até ali só pra verificar e resolver um problema em relação às entregas de sua fábrica, estava louco pra chegar em casa.

- Você teve sorte, porque eu não ando dando carona, e to morrendo de pressa. Luiz tinha uma fábrica de pregos, também mexia com sucata. Tinha comprado uma máquina a pouco, e havia um problema com a matriz, que nem uma viagem a São Paulo resolvera o problema. Queria agora alguém pra desenhar o prego, com as medidas e tudo, pra poder mandar por e-mail. Mais adiante na viagem, me contou que desejava achar um jeito de reaproveitar o arame que vai dentro do pneu. Disse-me que já estava velho, mais ainda queria inventar uma máquina que fizesse isso.

No trevo de Criciúma peguei uma bem diversa. Dessa vez um carro grande importado, que eu não imaginaria que parasse. Por volta dos 40 anos, cabelo ralo. Não ia muito mais, só até Araranguá, onde morava. Estivera ali visitando o pai na UTI, que acabara de remover um câncer da cabeça e contava 85 anos. A conversa ia e vinha descontínua, às vezes um pouco disparatada. Ele parecia estar muito tranqüilo. Nota para um saquinho de amendoim temperado que comi inteiro, delicioso.

Quando cheguei em Araranguá era meio dia. Eu já havia estado ali dois anos antes tentando carona, mas na direção contrária. Agora, fora a mais rápida que peguei, em menos de dois minutos, e novamente um homem pra cima dos quarenta. Esse fora policial federal por concurso, eventualmente era motoqueiro e viajante. Falava olhando reto, sempre vidrado na estada, usava uns óculos de lente grossa, mal deve ter me visto. O sotaque gaúcho era forte e veloz, atropelando as palavras; soltava “tchê” a todo momento. Várias vezes me segurei pra não rir e em outras não me segurei. Sacou um mapa do Rio Grande do porta luvas e discutimos qual seria o melhor ponto pra mim pedir a próxima carona. Estávamos em Torres, agora eu tinha a opção de pegar a litorânea ou continuar na 101. Continuei ali mesmo. Passavam poucos carros e minha cartolina já dava sinais de maus tratos. Cada vez que passava um caminhão, uma rajada de vento amassava ela toda.

Fragmentos sobre o movimento

ou Diário de Viagem

I


Viajar é um prolongamento absurdo da ida ao mercado, da volta na esquina. Permanecer intermediário. Pra sentir e ouvir as evidências do movimento, o ruído do veículo que me traga pra frente.

Não há nada que fique, tudo se vai. Por vezes me vi falando e agindo como se não tivesse me trazido junto. Não trago nem um pensamento ao vento que traga. O olho se estende como a planície, e engole as cores do mundo. Sentei-me na traseira da uma moto às 7:30 da manhã de um domingo nublado e chuvoso no Uruguai, segurei-me nos ferros do assento e fui mais veloz do que em qualquer outro momento. As mãos grudadas, eu mal as sentias, umidade espessa do ar me engomando as dobras do rosto. A estrada completamente vazia. Vez em quando uma larga subida ou descida, mas na maior parte do tempo tudo plano. De alegria engoli aqueles vinte quilômetros, caminhar depois foi dormente.