05/03/10

Eu fui criança
mas isso foi a muito
tempo

fui poeta, mas
isso eu nem me
lembro

brevemente distânte
como o sonho dessa noite

agora eu guardo meu
filho nascido
que eu desejo tanto

dentro do vácuo
que é
habitar quem eu fui.

Fragmentos sobre o movimento

XI - fim


Encontrei Rafael por acaso no ônibus pra Floripa, e ainda tinhamos comprado poltronas muito próximas: lado a lado na última do corredor. A última vez que agente tinha se visto fora em Buenos Aires. Chegando na Ilha 5:30 da manhã, fomos direto pra praia mole ver o sol nascer. Ele tocou flauta, sacou umas partituras e apoiamos o guarda-chuva pro vento não virar as páginas, debaixo de uma cabaninha. Tocou aquelas músicas lindas irlandesas, russas, puras e fortes. Sempre uma cadencia se repetindo, criando o ritmo a galopes, depois subindo ao modo do primeiro vôo de um jovem gavião. Me fazem pensar num touro virgem louco de desejo pra mujir e andar pelos campos, achar uma vaca bem boa na encosta de uma colina e traça-la sem pudor.

Idéia ou pensamento digno de nota é a presença de vocês meus amigos na minha viagem.

Diante das diversas situações práticas, caronas e buscas de lugar pra passar a noite eu as discutia com vocês, via nitidamente qual seria o comportamento e não me sentia sozinho, muito feliz pelo companherismo. Várias vezes via as coisas com os meus e seus olhos, as vezes mais com os seus. Sempre há alguém junto a mim dentro da minha cabeça, por mais discreto e subterrâneo que seja, mas ali via até os gestos de vocês, os comentários, desenhava toda uma presença.

Punha seus olhos na frente dos meus. Nunca mais de um por vez.

***

gato branco na janela
lambe-se ao sol da
tarde. Sibila ponta do rabo
e lambe-se o gato na janela

faz sol, é sábado, criança mia e
lambe-se o gato na janela
passarinho, nem começo nem fim

agora musica new age
ecoa menor

lambe-se lambe-se
o gato

rita agora come alguma coisa com a amiga, as duas vão
pegar o ônibus azul pra ferinha da Lagoa, ela dá larga risada,
ela cortou os cabelos; estão curtos. Ela é menina muito boa

Violão é aumentativo por causa da viola. Se não seria Guitarra. Estive na Argentina, lá é assim, no espanhol é assim. Em inglês é guitar, em alemão é muito parecido, me disse o Rafael Grigoletto. Violão é aumentativo por causa da viola. Viola, Violão, violino. Violoncelo. Todos tem curva no corpo e no nome. Curva boa da letra ó, um vê entre as curvas; violão é violado, tem curva muito boa, que escorrega, dá frio na barriga.

Fragmentos sobre o movimento

IX

A fachada do hotel era alaranjada, as janelas todas de venezianas fechadas. Era por volta das cinco horas quando toquei a campainha, e ouvi barulho vindo da janela mais próxima. A porta entreabriu-se e um velho calvo de pele queimada com barba por fazer se inclinou pra fora com os olhos semi-cerrados como se a luz do dia doesse-lhe a vista. Ali mesmo era o hotel, perguntei. Eupídio então voltou-se para a pequena escrivaninha atrás de duas poltronas velhas verde limão, cheia de papéis e cadernos usados. Perguntou meu nome, e em seguida me pediu licença e saiu. Voltou com os óculos, estava de meias e o cinto desafivelado pendia no ar. Depois de anotar meu nome fitou o painél onde estavam as chaves dos quartos por um longo momento, até que retirou a número 12.

Agora de chinelos, Eupídio ia na frente me guiando por um corredor escuro. Resmungou uma pergunta sobre a chuva e eu disse que a pouco estivera chovendo. “é uma merda”, resmungou com sigo mesmo, e nós agora viamos o chão do corredor sujo, marcado por passos de barro. A luz iluminou tudo e depois o velho virou a direita a céu aberto, num quintal enlamaçado. Resmungou novamente, certamente algo sobre a longa tábua de madeira que nos permitia atravessar o lago de lama até um novo corredor, onde encontrava-se o quarto número 12. Eram 20 reais com café da manhã. O lugar era sinistro. Primeiro sinal evidente, a idade que pesava ali. As lajotas da pia do quarto, o chão de madeira em mosaico, parecia um origami, as cortinas expessas e pesadas, as cobertas morrom com antigos bordados, a roupa de cama áspera. O lugar era gelado, tudo que eu tocava estava frio; a pequena janela, virada para os fundos, de forma que nunca batia sol direto. Corri a cortina para o lado e abri a janela. Batia vento forte, uivava, e se via um paiol de madeira, tralhas aleatórias velhas pelo quintal. Deitei na cama fria, olhei pro teto, imediatamente o cheiro de coisa velha trouxe-me a lembrança da antiga casa da minha vó. Há um cheiro característico em casas velhas, tapetes velhos, e principalmente cobertas velhas.

Era uma cidade muito pequena, a rodoviária um saguão que poderia ser de uma estação de trêm de 1920. Ia dar um cochilo e depois dar uma volta, mas acabei capotando forte. No meio da madrugada vi a luz do corredor se ascender e ouvi mulheres conversando, e fazia tanto frio que tive de pegar mais uma das cobertas pré históriacas no armário. Além da minha havia outra cama, e entre elas um pequeno criado mudo, com uma gaveta. Abri-a curioso. Havia um cinzeiro de vidro azulado e mais nada. Como já tinha dormido muito, acordei muito de noite, me espantou como o quarto estava branco, meus tênis jogados pelo tapetinho antigo reluziam esbranquiçados, a lua era cheia. Até peguei minha câmera pra ver se captava alguma luz da lua, mas nada, tudo preto. Quando peguei no sono de novo, tive alguns pesadelos, mas nada aterrorizante: senti presenças de gente estranha, visões de homens e mulheres. No dia anterior, entretido com a singularidade do lugar, tinha divagado bastante sobre tudo que houvera se passado ali, as energias que aquelas paredes antigas poderiam ter conservado. Sonhando, dei corpo pras fantasias, foi como se sentisse na pele os fantasmas. Essa idéia me ocorria no meio do sono, que aliás era um tanto lúcido, do qual me recordo bem, e então me espantava e alimentava as idéias por curiosidade. Em algum momento, me veio a imagem, ou melhor dizendo, não imagem física, mas a imagem da presença dela, algo abstrato, mas forte o bastante pra me trazer a certeza de que era uma mulher; e tendo lúcido a consciência que sonhava, decidi beijá-la, quando então senti muito forte em meus lábios os lábios dela. O beijo era gelado e tão real, que num esforço de toneladas emergi do sono de propósito e acordei, tanto foi o espanto. Não demorou dormi novamente e várias vezes tive sonhos muito parecidos, lúcidos, extremamente sensitivos, os quais em momentos muito angustiantes eu acordava à força.

Dormi e dormi, mais e mais, acordando embriagado de sono, olhando ao relógio e capotando novamente. Eu dormiria ainda mais se não tivesse que tomar o café e zarpar daquela cidade sinistra o mais rápido possível. Da mesma forma como ficamos acordados por muito tempo e perdemos o sono, acontece também o contrário, ao embalar-se muito sono parece que um céu desabou em cima do corpo. Andando por aquelas ruas mais tarde a caminho da estrada, me vi doido pra ir embora a qualquer custo. E foi demorado, mais de uma hora até um caminhão que levava arroz para Pelótas parar. Depois iria carregar de banana e voltar pro Chuí. Num caminhão o banco é largo e dá até pra deitar, sente-se à vontade. Junto viajava outro guri, de dezoito anos, que ia a Pelotas pra fazer o exame do exército; estava ansioso e queria servir. Foi uma viagem linda, era uma reta interminável entre duas lagoas gigantes, o céu todo azul. Uma delas, a maior, é do tamanho do meu dedão no mapa do Rio Grande. Contamos umas dez capivaras mortas da estrada, o lugar era uma reserva ecológica.

Em pelotas me deixaram num ponto muito ruim da estrada. Já era quatro horas e ninguém parou até ás cinco. Entrei na cidade e peguei um ônibus até a rodoviária, deixei minha mala no guarda volume e tomei outro pro centro. Caminhei conhecendo a cidade. Sem muitos prédios, uma praça central sem iluminação. Achei um calçadão animado onde liguei pros meus pais de um orelhão. Depois entrei numa lanchonete e comi dois x- bacon com uma cerveja gelada e foi a melhor coisa do mundo.

Fragmentos sobre o movimento

VIII


caminhar depois foi dormente. Adiante, a chuva engrossou, mesmo que ainda não suficiente para encharcar. Havia um homem do outro lado da pista, parado na estrada. Mais perto vi que era um policial. Acenos de mão, silêncio, um carro a cada três minutos. Mais adiante, a chuva virou umidade, enquanto as árvores grandes, abundantes ali, pingavam muito ainda na terra. Então, um cachorro morto. Pelo castanho, as patas de trás abertas e estendidas no asfalto. Um velho andarilho em trapos, de pele queimada, calçando grandes botas pretas até quase o joelho, mancando, passou por mim resmungando e logo sumiu.


Eucalíptos de ambos os lados da estrada, segui em frente, tendo em mente que a próxima cidade era alcançável à pé. De vez em quando o portão de alguma fazenda, cachorros soltos. Passara a ressaca da moto.

Fragmentos sobre o movimento

VII

No trêm que peguei pra Mar Del Plata, um pequeno grupo de adolescêntes meio hippies sentaram ao meu lado. Um chico na poltrona próxima, duas chicas nas da frente. Uma delas falava muito, era gordinha e bochechuda, vestia uma linda blusa de lã marrom e branca. Eu a via bastante porque se virava pra rir e falar com o chico, diferente da outra, que parecia mais quieta. Pensei comigo mesmo: quero falar com eles, seria ótimo, estou solo como nunca. Mas fiquei me imaginando namorando a gordinha; me acomodei na poltrona e me aqueci com a paisagem. Fazia sol e frio, ainda estávamos perto de B. Aires. Na contenda íntima, corria-me o trêm. Planejava investidas com o chico, logo ao meu lado, enquanto fitava a janela concentrado, curioso pelo que diziam, as duas se levantaram e foram, e o chico me tocou no ombro: “queres fumar?”, fazendo o gesto maconheiro que reconheci entusiamado. Ficamos entre os vagões, conversando alto devido ao barulho forte e constante do trêm. Mais tarde eles trouxeram dois tambores grandes, um deles era um caron, daqueles que agente senta em cima, e também uns chocalhos feitos por eles mesmos. A outra menina acabara de se formar em agronomia; tinha o cabelo preto curto e liso, olhos grandes e verdes, vestia uma blusa de flanela. A gordinha me disse pra eu me pendurar pra fora e gritar com toda força. “Te descarega todo”. Devia ser o começo da tarde, o vento corria gelado e espesso, e sempre a planíce na minha frente. Lá pendurado, a voz parecia afogada pelo vento, e com aquela barulhera toda teu grito mais forte ninguém ouvia.

Fragmentos sobre o movimento

VI

Da beira da proa avisto um barco. Neblina nos protege. A calmaria predomina, não há vento, sendo que navegar torna-se lento. Muita atenção na última novidade, os tripulantes todos concentrados, afinando os olhos a ver o outro. Bem onde a neblina fecha seu cerco ao redor de nós ele aparece em parte, de perfil. Silêncio na beira da desconfiança e da afinidade. No mastro ao longe, deviam ser quase50 milhas, vela branca se confundia à neblina, enrugava-se com a falta de vento e tinha evidências de um rasgo no canto inferior, faltava-lhe um bom pedaço. Sendo assim, minha dúvida flutuava débil sobre se seriam piratas ou gente amiga. Houvera grande tempestade na semana anterior e a ressaca ainda se via por aqueles mares do sul, exatamente na rota de onde esperávamos encontrar uma caravela aliada que retornava de uma batalha com rebeldes das ilhas rochosas.

Alguns dos nossos ousavam já brandar saudações, elas ecoavam alto na calmaria. Mas logo silenciavam, vendo que outros checavam seus rifles e iam pegar espadas no convés. Diria meu companheiro que havia piratas naquela região, onde era abundante caminhos difíceis de bahias pequenas e archipélagos rochosos. A cada movimento do barco ao longe uma nova suspeita, novo reconhecimento de algum detalhe familiar.

Não estariam eles nos vendo também?, espreitavam os marujos estáticos na ponta da proa. O fato é que se percebia claramente a espessa neblina que nos envolvia. Mas se percebia a espessa neblina lá também, do mesmo modo, pairando em movimento com a leve brisa do norte.

Por um momento, bateu um vento maior e os dois encarregados de armar a vela, de pronto se dirigiram ao comandante qual seria a decisão. Estamos muito longe, mas com a nova ajuda do vento conseguiremos muito bem chegar em distância boa pra bombardeios de canhão, aliás, calculou o tripulante pensativo, o tempo da vela era tempo bom pra carregar a munição e preparar a pólvora que haviamos adquirido a pouco. Deixando dois com terrível ansiedade, o comandante deu a ordem para aguardar mais averiguações sobre o outro barco. "Mandemos então um bote de reconhecimento, seremos rápidos e cautelosos". Respondeu o da vela. "Não", disse firme o comandante. "Se eles ainda não nos viram, não quero que saibam de nós pelo máximo de tempo possível".

"Mas senhor", interrompeu outro tripulante, "com o vento a neblina escasseia, facilitando-lhes a nossa vista". " E esse vento não durara muito, é bom aproveitar pra se aproximar e já ir preparando os canhões".

O comandante ao meu lado ficou em silêncio, eu o conhecia bem e via que estava realmente em dúvida. Nessa hora houve certa agitação em todos, à favor de não demorar o ataque. Corria todo tipo de boato sobre os piratas daquela região, de como eram cautelosos e tinham táticas de aparentar navios debilitados ou fantasmas para depois bombardear quem vier ajudar. Na ausência de comando temporária, tão imerso em concentração estava o capitão. Grande movimentação em preparo para o ataque se formou. Caso alguém tomasse alguma decisão sem ordem, a pena naturalmente seria dura, mas nada impedia de que ficassem apostos, a poucos movimentos de hastear a vela e carregar munição.

O outro barco ao longe havia se movimentado tanto quanto nós: muito pouco, e ainda em meio a neblina. No nosso, a vontade do ataque crescia entre nós, porém um bom grupo de dez preferia examinar o outro com longas lunetas, pois, com certeza habitava todos nós a incessante idéia de que poderia ser o barco aliado.

O da vela retornou a onde estávamos, eu e o comandante. Eu e ele não haviamos trocado uma só palavra, mas pressentiamos que ambos acreditávamos num movimento do outro que daria claras evidencias da situação em alguns segundos. Ao fundo, alguns bradavam alto perguntas, gritando, mas eram quase 50 milhas. Ao se aproximar do comandante, falou baixo "Você sabe porque os homens estão assim. Não fosse o rombo na traseira do casco a situação não seria urgente. Todos já sabem".

"Sim, aportaremos o mais breve possível, mas realmente acredito que não nos viram, é o que parece. Se forem inimigos, evitaremos uma batalha."
"Nesse caso, se nos viram só podem ser inimigos, caso contrário viriam ao nosso encontro".
"Podem estar a espera, como nós".
"Por Deus, comandante! Nossos amigos devem estar morrendo de fome, vão mal, já teriam dado algum sinal". O comandante pareceu convencido por um momento. Olhou para mim e perguntou-me o que eu achava.

"Esperaremos mais um pouco. Não há razão para pânico". Eu era o 2º comandante e fui atendido. O barco à distância se movimentou para leste, muito devagar, e por um par de minutos o silêncio retornou. Inclinou-se a proa então em direção ao céu e assistimos todos a um belo naufrágio.


Ansiedade, desejo, medo do outro. Medo, tamanho e inexplicável. Porque medo, justamente, medo tolo, obviamente inútil, incoerente, de costas à lucidez? Falemos então do cabelo e não da cabeça, da pupíla semente de manga e nunca do olhar. Falemos da linha, do traço e da cor, falemos então do sapato e da sola, pra ver se caminhamos por onde o pressentimento se enrosca.

Cadê meu poema, prosa imbecil, avassaladora de Cantos, entulho mal digerido em beira de rio??

Fragmentos sobre o movimento

V

Cheguei na rodoviária de Buenos Aires tremendo de frio. Caminhei até a rua Florida para trocar dinheiro, e logo estava chegando no apartamento de três quartos onde está morando o Grigoletto, na rua Tacuarí 1098. Os apartamentos aqui são antigos, tem o pé direito alto, as portas compridas. Aliás, tudo tem um jeito mais largado, os carros, as vitrines, as ruas em geral. Eu nunca tinha pensado na Latino América como me ocorre agora. Morando com o Rafael, um garoto chamado Davi que faz música na Univ. De cá me contou e tocou várias canções equatorianas (da onde ele é), e de rock argentino e latino americano em geral. É realmente um mundo de coisa, um tanto paralelo ao Brasil, que se estende da terra do fogo até o México. Uma noite ficamos com o violão enquanto a chica dele, equatoriana também e que divide seu quarto, estava toda encasacada envolta da mesa, eu só via os olhos grandes e redondos se contraindo em expressões divertidas, enquanto o cachecol lhe cobria a boca e o nariz, a toca a cabeça e as orelhas, a jaqueta abrigando as pernas magrinhas dobradas junto ao corpo encolido na cadeira. Fumei baseado também um dia e constatei que não devo mais fumar enquanto estiver aqui.

***

(...)O fato é que agora me meti numa pcuinha envolvendo contratos de aluguel e um proprietário psiquiátra nervoso. Rafael saiu pra viajar e eu fiquei aqui inicialmente até o dia 19, responsável por danos. E agora de manhã arrebentei o elástico da veneziana de plástico embutida na janela. Está muito velha, é pesada e agora fiquei sem jeito de abri-la. Combinamos que amanhã ele (proprietário) virá aqui para pintar a parede em alguns cantos e não estou disposto a discutir com ele nem pagar nada, mesmo que imbecilmente tenha tirado fotocópia de meus documentos e assinado a porra do contrado. Vou sair fora amanhã logo que amanhecer o dia com minha mochila para algum hostel barato, que tenha desayuno com medias lunas.

***


Liguei pra vários Hostels e o mais em conta que ainda tinha vagas, reservei pro outro dia. Mas ao chegar em casa trazendo um vinho, encontrei os equatorianos e o Tim (Alemão Panamense muito gente boa) bebendo e ouvindo música, e logo que a conversa fluiu pros meus problemas com a cortina eles tentaram me tranquilizar, dizendo que era um problema simples. Todavia conversamos bastante sobre várias coisas. Bebemos muito até eu sentir náuseas fortes, causa do ritmo nada usual com que estava fumando os palheiros gaúchos. Cancelei meus planos pra ver jazz ao vivo pra sair com eles, mas não deu tempo. Outras pessoas novas conversavam, haviam chego depois de eu já estar bêbado. Após um longo silêncio sentado na minha cadeira, senti que estava vindo. O colombiano me ofereceu mais vinho, e então me inclinei levando a mão na boca, deixando o primeiro lance de vômito ali, a respingar no chão da sala. No banheiro foi minha sentença. Caí meio morto na cama, ainda levantei pra vomitar mais depois.
Comi pão ao acordar e bebi muita agua. Escrevi duas ou três palavras de adeus e fui pro hostel onde fiz a reserva.

Cristo! Nunca estive tão faminto em minha vida. Agora percebo toda a força que isso gera. Te deixa super concentrado, atento. E o bom humor só vem concretizados os esforços. A mesma coisa com sexo.

Mulheres a esperar o metrô ou uma peça ou um filme, prendendo ou soltando o cabelo, são como filmes mudos, entretanto coloridos. Dando passos vagos num corredor, olhando-se no espelho. Ver um filme de que se gosta depois de muito tempo em algum plano sequência onde há cores quentes.

Gastei 50 pesos num concerto de jazz num clube chamado Notorius. Valeu a pena. O som lebrava bebop, Charlie Parker, mas era forte a mistura latino americana, de Salsa e música cubana. Algumas composições e arranjos se sobressairam. Destaque para o trompetista, que tocava com um desleixo lindo, tateando as notas como um cão arfando no calor. Quando se soltava mais, após várias frases, os sons se revigoravam, ganhavam força, mas sempre cuidadosos, procurando abrigo em sequências amorfas. O sax alto era o tipo excitado e gozador, ao modo das subidas e descidas de Byrd, já o baixo era suave e por vezes dava passos cuidadosos. Bateria e percussão exaltados, barulhentos um pouco demais para os metais, principalmente o trompete desleixado. Apesar disso batucavam super bem, procurando várias vias de contratempo.


Por vezes me sinto isolado do carisma deles; é uma solidão diferente a de falar com muitas pessoas por dia, sempre assuntos absurdamente práticos, ainda mais em outra língua.

Passei mais um dia caminhando muito, absorvendo a geografia. Rapidamente eu assimilo as linhas do metrô, o mapa do microcentro, os pontos de câmbio, direção dos bairros, devorando os tipos de pavimento, o design das placas, o tamanho das quadras, a extenção das avenidas, a forma das portas, das janelas, sacadas.

Aqui, diferente das cidaes onde não estou viajando, me encontro pelo nome das ruas.

Fragmentos sobre o movimento

IV





Nota para uma manhã sem memória
em POA:

DEDO:
cada um dos prolongamentos articulados,
das mãos e dos pés

(Houaiss)

nota: O conhecimento de um funcionamento não torna menos surpreendente sua comprovação.


No mais me senti pobre de alma, apaziguado pela planície. Ao caminhar por ela caminhava cada vez mais. Logo que comecei com divagações ruins quis comprar um livro; seria uma distração se a indiferença não me tomasse de modo que eu não fosse capaz de sequer escolher algum na livraria, sendo que o que acabei comprando foi um adesivo de geladeira do F. Pessoa para dar de presente. Ainda fizera a burrice de comprar cigarros de palha caros mais um isqueiro do pior possível por três reais numa tabacaria.

Mais tarde, já era noite, encontrei uma multidão, e digo Multidão, de jovens entupindo a calçada. Desde garotos de treze anos, emos, até manos bebendo tubão, topetudos tocando violão, barbudos roqueiros, todos numa algazarra que congestionava o transito de pedestres por mais de quatro quadras. A coisa ficava mais densa na frente do supermercado que entrei pra fazer compra. Ao sair, a polícia havia espantado um bom número, mas era realmente muita gente, dificilimo de conter. Voltando vi alguns confrontos entre a polícia e eles; logo que a viatura se afastava, voltavam a fechar a calçada. Passou por minha cabeça que podia ser algum tipo de protesto, mas era uma confraternização livre de qualquer preceito, sendo que se não fosse a diversidade de estilos, daria pra pensar num grande show emo ali em volta. Os policiais gritavam com eles, que então começavam a circular deixando visível a má vontade; já uns, empolgados com o grande número, respondiam, e não havia muito o que fazer por parte da polícia. Por vezes vi pequenas perseguições, mas isso parecia quase um detalhe, pois a festa rolava ao ar livre normalmente.

Um temporal tremendo caiu na cidade essa noite. Levanto no frio da manhã esticando os ossos numa tentativa de reviver e me refrescar de ânimo. Me deu dor de cabeça decidir qual seria meu próximo passo na viagem, depois que soube que o Grigolleto iria zarpar de Buenos A. Já na quinta feira de noite, sendo que eu teria então apenas duas noites com teto grátis na capital porteña se saísse imediatamente rumo ao sul. Comprei o bilhete pela Pluma, foram quinze horas até lá.
E foi um passeio pra mim. Eu podia mesmo viver a vida dentro de um ônibus, trêm ou navio, contanto que não pare, que a vista seja uma constante mudança, assim como as correntes de vento.
Nos bancos da frente um homem e uma mulher conversavam em espanhol; uma chica de cabelos morenos (aliás, ouso afirmar que mais de 80 por cento dos hermanos argentinos tem cabelo escuro); o homem era mais velho, eu podia ver o cucuruto careca, como também suas mãos morenas e grandes com que ele aparava as costas da poltrona dele. Primeiros sinais do estrangeiro. As cortinas alaranjadas estavam quase todas cerradas, criando um clima cavernoso colorido. Meia dúzia de chicas de uns dezoito anos riam e sacavam fotos dando gritinhos. Prestei muita atenção nas conversas ao meu redor. No mais me senti pobre de alma, apaziguado pela planície.

Fragmentos sobre o movimento

III

Encostou um cara que ia até Osório ( 80km de POA), mas desconfiei de algo estranho: a mulher no banco do passageiro se inclinava de costas em direção ao banco de trás, numa posição desconfortável. Já me preparava pra recusar a carona quando vi, mesmo pelo insufilme, que a moça não fazia mais do que ajeitar as coisas pra dar lugar a mim. Era uma família; uma menina de uns cinco anos foi comigo no banco de trás. Fiquei acanhado com a situação e falei pouquíssimo a viagem toda, enquanto a criança loirinha me olhava com atenção e desatava a se mexer e falar com os pais sobre a frieira que a incomodava no minguinho do pé, ou sobre como o caminhão era lerdo e a terra era alaranjada. Informação digna de nota é que o nome da coisinha era Gabriela, nome da garota dos meus poemas que andei escrevendo a um mês atrás, e que vinha sendo uma espécie de alter-ego espiritual meu. Foi tão sincera e afetuosa a sensação durante a carona, que resultou num revertério: eu quase mudo o trajeto todo, talvez um pouco nervoso, não sabia o que dizer. Enquanto isso continuavam a conversar normalmente entre eles(Quando se está por demais amortecido e muito dentro de si, a liberdade pode causar sensações esquisitas). O cara tinha o cabelo raso e ruivo, era parrudo, falava baixo e pouco, tinha cara de polaco. Comentou que uma vez havia andado trinta quilômetros na estrada sem conseguir carona alguma.
Projeto falho também o de fotografar todas as caronas. Fico realmente encabulado de pedir uma foto. Me deixaram num pedágio antes de entrar em Osório, na entrada de uma lanchonete de estrada.

Enfim, contente por estar perto de Porto Alegre. A próxima carona foi a que deve ter rolado a melhor conversa, num carro branco de traseira comprida, e mais uma vez alguém pra cima dos quarenta. Esse fora policial militar e fazia muitos anos era bombeiro. Anotei o nome do quartel que ele comanda, fica bem na divisa de SC com RS, chama Quartel Terra de Areia, e disse ele que posso pedir pouso lá quando estiver passando. Me contou também várias histórias de viagens, primeiro a de um japonês de bicicleta que havia pedido pouso no mesmo quartel. Mais tarde, conversando com o sujeito, descobriu que a rota dele se estendia do Alaska até a Terra do Fogo, América de cabo a rabo! E tudo sempre de bicicleta, tendo patrocínios de empresas japonesas. Ainda ia escrevendo um livro durante a viagem, parece que já estivera viajando assim em outras partes do mundo. Descrevendo um pouco essa carona (queria chamar-lhe pelo nome!), mesmo estando sentado, via-se que era baxinho mas forte, do tipo atlético; cabelo quase todo branco, mas seu emblante inspirava saúde. Falava com uma firmeza boa e amigável. O papo fluia bem, via-se que se empolgava por aventuras, mas logo minha mente se cansou e tombei a cabeça no encosto do banco. A certa altura contou que tinha já escrito inteiro um projeto para realizar uma volta completa no estado do Rio Grande pelos bombeiros gaúchos, correndo o trajeto inteiro, e revezando-se em cada corpo de bombeiros pelo caminho. Se não me engano a volta toda duraria trinta dias. Seria um novo récorde no Guiness Book.

Apesar de já estar bem perto de POA, ainda havia 20 Km. Era quatro e meia, sendo que eu já ia pensando o que faria com a noite se aproximando cada vez mais. Demorou meia hora até que finalmente alguém jovem parou, indo trabalhar. Devia ter no máximo 27 anos, rosto bochechudo e redondo, um pouco infantil, olhar atento e divertido; cabelo bem alisado, curto. Vestia roupa de marca, escutava pagodão, além disso, eu já reconhecia o forte sotaque da capital. O carro era novo e ele dirigia muito rápido, mal olhava pra estrada enquanto falava comigo. Mas era um sujeito divertido, se comportava de um jeito bem vivo, nunca demonstrava tédio nas epressões do rosto. Me fez uma barbada, me largou bem perto de onde eu queria, entre o centro e a cidade baixa.

Eu tinha visto na internet que o hotel onde eu ficara da última vez era na Riachuelo e foi assim que orientei a carona pra me deixar num lugar razoável. Mas me enganei, e justo no caminho até a Riachuelo é que encontrei por acaso o tal hotel. O nome é “Casa do Estudante”. Apertei a campainha e ouvi barulho de jogo na tevê. Assim que subi as escadinhas, ouvi um “Ah, agora não!”. Uruguay e Alemanha disputavam o terceiro lugar da copa e o cara da recepção era Uruguaio. Deixei minhas coisas no quarto n25, o penúltimo do longo e estreito corredor do segundo andar, e sai pra dar uma volta, ver ainda o fim do dia na cidade. Caminhei por um longo trecho na Rua Gen. Lima e Silva, na cidade baixa, parando na volta pra comprar comida e tomar um caneco e chopp, até que, enfim no quarto, capotei.

Fragmentos sobre o movimento

II

Acordei antes de nascer o sol, às cinco e meia da manhã, pra arrumar as últimas coisas: desparafusar duas prateleiras da parede, jogar uma montoeira de restos de papel e fita crepe fora. Meu quarto depois que restara apenas minha mochila de viagem ainda não deu a impressão de vazio. Havia ainda sujeira espalhada pelas paredes, heterogenias; uns mofos perto do teto nos pontos que fugiam a luz do sol; pequenos descascados por todo lado, marcas de móveis, e também o que nos faz lembrar solas de sapato. Fiquei com preguiça de tirar uma fita crepe grudada no teto. Lia-se nela: “fantasma de Curitiba III”. Antes havia uma foto logo abaixo, de um santo-mendigo perambulando por Curitiba, agora aquilo parecia coisa de médium ou espírita. Logo depois que vi a fita solitária em cima de mim, olhei pra baixo e percebi um toco de vela, proveniente de uma noite em que minha rua estava sem luz e ao chegar em casa encontrei o apartamento vazio, a boca do fogão ligada derretendo uma pobre cafeteira. Na parede ao lado do toco eu havia anotado uma estrofe do Romanceiro da Inconfidência da Cecília, e só agora tomei consciência de que o tema era explicitamente os mortos, pois antes me pareceu coisa bem mais subjetiva. O último verso: “tudo é sombra de sombras, sem dúvida...”. E meu quarto soava como uma antiga caverna. Ajeitado tudo, percebi que já era seis e meia passada, apesar da falta de luz. Deixei o lixo lá fora, dei última olhada pro prédio e desci a rua. (aos gritos de bichos voadores que habitam Floripa, que especulo, sejam as araras de penas azuis espetadas no rabo que vejo de vez em quando).

Fui chegar no ponto da estrada onde queria bem depois das nove horas, num ônibus que atravessa a Palhoça inteira até um destino que leva o nome de “Formiga”, talvez um município ou morro. Estendi minha placa de cartolina que dizia Porto Alegre à uns bons cem metros do pedágio, bem aonde as faixas se afunilam de volta ao normal. Estava nublado e tudo vazio nos arredores da pista. Do outro lado, o posto da polícia rodoviária federal parecia abandonado, em seguida uma casa de guincho, onde não se via ninguém. Apenas num boteco do meu lado da pista se via umas mulheres, que cortavam batatas. Eu fui lá mijar. Ia ficando tudo num semi-breu quanto mais se adentrava no lugar. Havia um balcão desses com prateleiras superiores, num grande salão. Parecia que faltava bebida nos armários, muitas lacunas entre as garrafas. As duas mulheres eram loiras parrudinhas de uns 30 anos, sorrimos e voltei pra estrada. Acho que demorou em torno de meia hora pra um furgãozinho branco todo arrebentado parar e me levar. Era um senhor de uns 50 anos, mas que a palavra “senhor” lhe soa muito mal: bem magro assim como eu, com jeito de rapaz quando se expressa; na verdade pra mim é difícil descrevê-lo. Entre outras coisas ele me causou impressão semelhante ao meu pai, no jeito melancólico e ao mesmo tempo enérgico que combatem entre si, vencendo uma espontaneidade ingênua, mas bem sofrida, como se só lhe restasse o osso. Eu devia ter anotado o nome de todos os seis que me deram carona nesse dia, pois agora me vem o nome apenas desse primeiro, era Luiz. O cabelo era já grisalho, o rosto cheio de rugas, cansado, onde só sobrou um garoto ou o esqueleto da força de um garoto. Os olhos se arregalavam bem vivos, embora as pálpebras se contraíssem pra baixo, como se aflitas. Ele ia a Criciúma, era um bom trecho.

- Quando vi lá do pedágio, eu disse vou dar carona pra aquele cara, nem sabia quem era, mas ia dar. Me disse isso não sem entusiasmo logo que entrei. Tinha ido até ali só pra verificar e resolver um problema em relação às entregas de sua fábrica, estava louco pra chegar em casa.

- Você teve sorte, porque eu não ando dando carona, e to morrendo de pressa. Luiz tinha uma fábrica de pregos, também mexia com sucata. Tinha comprado uma máquina a pouco, e havia um problema com a matriz, que nem uma viagem a São Paulo resolvera o problema. Queria agora alguém pra desenhar o prego, com as medidas e tudo, pra poder mandar por e-mail. Mais adiante na viagem, me contou que desejava achar um jeito de reaproveitar o arame que vai dentro do pneu. Disse-me que já estava velho, mais ainda queria inventar uma máquina que fizesse isso.

No trevo de Criciúma peguei uma bem diversa. Dessa vez um carro grande importado, que eu não imaginaria que parasse. Por volta dos 40 anos, cabelo ralo. Não ia muito mais, só até Araranguá, onde morava. Estivera ali visitando o pai na UTI, que acabara de remover um câncer da cabeça e contava 85 anos. A conversa ia e vinha descontínua, às vezes um pouco disparatada. Ele parecia estar muito tranqüilo. Nota para um saquinho de amendoim temperado que comi inteiro, delicioso.

Quando cheguei em Araranguá era meio dia. Eu já havia estado ali dois anos antes tentando carona, mas na direção contrária. Agora, fora a mais rápida que peguei, em menos de dois minutos, e novamente um homem pra cima dos quarenta. Esse fora policial federal por concurso, eventualmente era motoqueiro e viajante. Falava olhando reto, sempre vidrado na estada, usava uns óculos de lente grossa, mal deve ter me visto. O sotaque gaúcho era forte e veloz, atropelando as palavras; soltava “tchê” a todo momento. Várias vezes me segurei pra não rir e em outras não me segurei. Sacou um mapa do Rio Grande do porta luvas e discutimos qual seria o melhor ponto pra mim pedir a próxima carona. Estávamos em Torres, agora eu tinha a opção de pegar a litorânea ou continuar na 101. Continuei ali mesmo. Passavam poucos carros e minha cartolina já dava sinais de maus tratos. Cada vez que passava um caminhão, uma rajada de vento amassava ela toda.

Fragmentos sobre o movimento

ou Diário de Viagem

I


Viajar é um prolongamento absurdo da ida ao mercado, da volta na esquina. Permanecer intermediário. Pra sentir e ouvir as evidências do movimento, o ruído do veículo que me traga pra frente.

Não há nada que fique, tudo se vai. Por vezes me vi falando e agindo como se não tivesse me trazido junto. Não trago nem um pensamento ao vento que traga. O olho se estende como a planície, e engole as cores do mundo. Sentei-me na traseira da uma moto às 7:30 da manhã de um domingo nublado e chuvoso no Uruguai, segurei-me nos ferros do assento e fui mais veloz do que em qualquer outro momento. As mãos grudadas, eu mal as sentias, umidade espessa do ar me engomando as dobras do rosto. A estrada completamente vazia. Vez em quando uma larga subida ou descida, mas na maior parte do tempo tudo plano. De alegria engoli aqueles vinte quilômetros, caminhar depois foi dormente.

movimento no criado mudo

não queres ilusão?

te cai em cima o delírio.
a ilusão da verdade

movimento na cozinha

Ando tremendamente
Serpente
Assim dependente
Do derepente

Uma espiada no mar
A cada gole d´agua

Receio de me desabar
No rio de sol à pino

a flechar correndo colina

sombra

Sombra passageira
samba tempestade quatro
rios

--

Essa sombra
é bamba

em estilhaçar
um quarteirão

divaga sem cansaço
tarde inteira
só fazendo cera

Acaba caindo
estralando os ossos
desvarios!

Essa sombra assustadora
é bamba

em te fazer sambar à quatro mãos

queira dar-lhe cafuné, pra ver
no linho frio da linha
[escura

te morde um cão cego
que veste fome no lugar
dos olhos



Sombra passageira
Passa samba tempestade
quatro rios.

Quero ver-te

Esse é o poema do Marcão musicado de que eu tinha falado.(http://marcokramer.blogspot.com/) Assim que reli ele em Curitiba (então perto do piano) fui direto pra sala tocar. Acabei fazendo uns troços mais difíceis do que eu consigo, por isso ele parece ainda um esboço do jeito que anda, fragmentado. Errei um bocado também, mas ai está! fiquei muito feliz em fazer isso, imensa alegria.


E a vida vem vindo na tua
direção. Imensa. Maior do que qualquer
olho

E você estende firme
a redinha branca
de pescador de vagalume.

(mas é dia, e estamos em junho)
O eterno desconforto de não estar
em lugar algum.

a única coisa que adianta
é o que vai adiante

- a sobriedade de um
suicídio lúcido
permeia-lhe os delírios
disformes

(o milagre do vício o
milagre do vício o milagre
do vício o milagre do
vício)

fragmentos de peixes e costelas de não ter mais jeito

O teto sendo um teto de ferro faz com que minha danificada sensibilidade encubra o terreno fértil dos oceanos para além do meu contato latejante. O alaska.

O peixe palpita para além da costela, o ritmo é extraviado; num susto fino e afiado, alguma coisa estava por um triz.

Por que isso depois que cresci de as coisas não parecerem simplismente livres que existem, mas tudo que conheço como que trancafiado entre celas? A morte da liberdade? ou um problema clínico?


Engraçado como tenho a forte impressão de que o momento em que vivo é sempre tangível com alguma outra época de minha vida; um tipo de sensação que volta como num estranho e indefinido ciclo.


me tange na agulha do tempo
uma chuva passada. E desse instânte em que tudo
tenho, num eterno procede, procede
não me resta nada.

me tange na agulha do tempo
uma chuva passada. Com ela uma torrente de
água, nuvem nublada, e peixes
de outrora.

me tange na agulha do tempo o úmido
da chuva passada. Não só o úmido da chuva
mas todo o úmido em volta dela,
que volvia em torno dela.

parece que o céu congelou de azul no
feto da noite. Imenso céu.
um avião sobe o primeiro lance
de nuvem

navega então num céu de Júpiter, na
noite azul fria de Júpiter, onde venta vento
cristalino e nada é quente, nem terno, nem abafado
tudo é uma cilada do ar vago
e solúvel
tudo é fresco

de não ter mais jeito.




(11/02/10)
O sujeito está numa grande livraria cheia de gente. Ele pega um livro qualquer, ao modo específico hesitante de quem busca um acidente equilibrado; por um lado o desejo, pelo outro, ir embora de mão e mente vazia.
A capa é inteira azul, de um mesmo tom. O título em letras brancas, Times New Roman. Há mais de cinco minutos que espera que vague alguma das poltronas que ficam entre as estantes. Agora ele vai e senta e abre o livro, e logo na segunda página, ou na terceira, passados os detalhes editoriais, há uma nota introdutória de poucas linhas na parte de baixo da folha, em itálico, e nada mais. Diz: "se ainda existe no mundo alguém que leia só pelo prazer - ou até mesmo por acidente - peço a ele ou ela, com indizível afeto e gratidão, que divida em quatro partes iguais a dedicatória deste livro com minha mulher e meus dois filhos."
Decide comprá-lo, e sai da livraria. Ele chega num quarto onde há um grande ar condicionado feito inteiramente de madeira, deita o livro no chão e se deita na cama por cima das cobertas, sem tirar os tênis.

Observações



respeita o silêncio que ele te respeita.




Observação química

solidão é o aumentativo de sólido


dentro do teu peito

Órgão muscular oco, na sombra
toráxica
que recebe sangue das veias
impulsionando-o
pra dentro
das
artérias azuis


(houaiss)

mulher que te vejo e espero

Palavras quando saem
da tua boca
são vazias

assim como teu beijo
tem o gosto ocre
do barro

esse teu amor de virgem víbora
eu não desejo à ninguem.

uma palavra te resume:
inverossímil

porque falar e pensar
já nascem mortos

mulher que te vejo e te quero

Tu nada tens a ver
com esse monte de entulho meu

você é coisa linda

em cada pedaço teu
desde teu seio
até um fiapo
de pensamento teu

é tudo úmido de tão vivo
e voraz e eloquente

inquieto como uma ave branca.

tua beleza é antes o vermelho
da rosa
do que a rosa em si

O gole

O gole


quando faço o que penso
existir
apenas desabrocho a farfalhar.

(duas janelas azuis turquesa
um mundo todo laranja
gotículas de cereja no para brisa do carro
(sombras tatuadas no pescoço do reflexo)
linhas amarelas que se abraçam)

os dedos e as veias são sobras divinas
a malha da blusa é a cerveja gelada.

quando penso deixo de existir
esse é o dia em que deixarei de dormir
(atrás da porta dorme o inimigo)

somos vários, famintos,

formentavamos a sorte quando estávamos
sem gole!!!



(20/11/09)

Matias, Camila, Marcão
(poema à seis mãos...)

Van Gogh

Estive lendo.
Estive lendo Van Gogh

e tive a certeza de que vou sofrer a minha vida inteira
desejando o amor que arde por todos os meus
vértices.

o jeito que ele pensava a vida sozinho
e o jeito de que eu e milhões de pessoas
pensamos o mesmo, lendo todos sozinhos


o jeito que ele meteu uma bala no peito

e o jeito que ele acreditava em Deus
e o jeito que ele caminhava com aquela força
melancólica o empurrando para perto dos campos
e das casas e daqueles mineiros sofridos e daqueles túneis
estreitos

o jeito de como ele via o sol

o jeito que ele devia enlouquecer naqueles minúsculos
quartos

e a força que ele tirava do seu próprio soluço inócuo
pra desenhar.

e como um poema pra mim as vezes não é mais
que a palavra poema

e o pensamento que guardei na palavra poema

e como ele sai as vezes sem saber que sai,
muito além da palavra poema

e como ele não sai com a palavra poema dura.
e como as vezes ele sai mesmo duro e mesmo
sendo palavra poema

e como palavras caminham sozinhas sobre
elas mesmas


(ago/09)
- querida, eu entrei pro mundo
do silêncio.

essa chama feita de cinza

Um dia no parque Tingui

I

olho no céu
cabelo na grama

enormes são os continentes
navegando lá em cima

vasto é o mundo lá em cima.

olho no céu
cabelo na grama

II

Cabana do tamanho do vento
mosaico de amarelos frêmitos

cabana do tamanho do vento
feita do amarelo do outono.

um japonês com violão
diminuto
lago inteiro só de reflexos

cabana do teto de outono.
abóbada de folhas do tamanho
do vento.


Fotografias

Os tempos dos químicos agindo sobre os grãos de prata, tão precisos, fizeram parte e ocuparam meu organismo por esses dias. Agora não me lembro direito, mas em algum momento me deu muita alegria em ver as fotos. Realmente, apesar do pragmatismo dos cálculos químicos, a exatidão científica da coisa, ela exige muita prática, para que várias áreas do pensamento (não necessariamente concentradas) trabalharem com diferentes tarefas simultâneas. Apagando a luz, depois de deixar todos os quatro objetos à mão, que são: tesoura, filme, espiral e tanque, certifico-me de que não há luz vazando pelo pano preto. Então, tudo pronto, olho pro negro preto, preto de ausência estampado no meu nariz, e num silêncio zumbidor e surdo, faço a primeira e mais prazerosa coisa: arrebentar a bobina do filme e tirá-lo pra fora. Fazer essa parte na madrugada de segunda pra terça, o escuro e o surdo silêncio, ambos completos, me foram como uma ducha gelada no pensamento; primeiro um medo curioso, que adiante refresca. As idéias eram espantadas pela única que havia sobrado, a idéia insolúvel da casa em silêncio, do porão debaixo da casa e do preto do silêncio dela. Então, minhas mãos e meu tato a trabalhar. Recortar a ponta inútil do filme e enrolá-la meticulosamente num espiral de ferro, de forma que as superfícies do filme nunca se toquem, nas diversas voltas. Difícil dizer o quanto isso dura, mas arrisco 10 minutos, pois ainda não consigo sem desfazer parte que percebi mal feito. Enrolado o filme todo no espiral, é só colocar no tanque. Já se ascende a luz. Aí, vem a parte dos banhos químicos, cada um a seu tempo.

11/02/10


Revelei e ampliei três fotos que parecem três fantasmas irmãos. Um é um santo - mendigo com uma capa preta andando na Barão do Cerro Azul, estático num movimento confiante e maluco. A outra foto, as costas de um senhor de paletó com mangas vazias, desfocado. A terceira lembra uma boca de algum animal marinho gigante, ou um robô bizarro com tentáculos vindo de uma ficção científica. Não se é da minha cabeça, mas tem algo que liga essas três fotos; todas guardam algo velado, sombrio, manco, e bem de leve, um tom apocalíptico...

20/02/10

os 3 fantasmas de Curitiba

Se a verdade existir

(provavelmente escrito em 2007, que achei perdido em alguma gaveta)


Se a verdade existir
é num mergulho de mentiras em que
me refresco

Se o mundo é terra plana
sem dó
minha pele, violão, capim,

quer dizer que me rendo

quer dizer que me rendo por um gole d´água.

Descobri que não há passado
E de repente, numa risada imaginada
Que não há futuro
Só há minha ducha gelada
Num dia quente pra burro