Fragmentos sobre o movimento

II

Acordei antes de nascer o sol, às cinco e meia da manhã, pra arrumar as últimas coisas: desparafusar duas prateleiras da parede, jogar uma montoeira de restos de papel e fita crepe fora. Meu quarto depois que restara apenas minha mochila de viagem ainda não deu a impressão de vazio. Havia ainda sujeira espalhada pelas paredes, heterogenias; uns mofos perto do teto nos pontos que fugiam a luz do sol; pequenos descascados por todo lado, marcas de móveis, e também o que nos faz lembrar solas de sapato. Fiquei com preguiça de tirar uma fita crepe grudada no teto. Lia-se nela: “fantasma de Curitiba III”. Antes havia uma foto logo abaixo, de um santo-mendigo perambulando por Curitiba, agora aquilo parecia coisa de médium ou espírita. Logo depois que vi a fita solitária em cima de mim, olhei pra baixo e percebi um toco de vela, proveniente de uma noite em que minha rua estava sem luz e ao chegar em casa encontrei o apartamento vazio, a boca do fogão ligada derretendo uma pobre cafeteira. Na parede ao lado do toco eu havia anotado uma estrofe do Romanceiro da Inconfidência da Cecília, e só agora tomei consciência de que o tema era explicitamente os mortos, pois antes me pareceu coisa bem mais subjetiva. O último verso: “tudo é sombra de sombras, sem dúvida...”. E meu quarto soava como uma antiga caverna. Ajeitado tudo, percebi que já era seis e meia passada, apesar da falta de luz. Deixei o lixo lá fora, dei última olhada pro prédio e desci a rua. (aos gritos de bichos voadores que habitam Floripa, que especulo, sejam as araras de penas azuis espetadas no rabo que vejo de vez em quando).

Fui chegar no ponto da estrada onde queria bem depois das nove horas, num ônibus que atravessa a Palhoça inteira até um destino que leva o nome de “Formiga”, talvez um município ou morro. Estendi minha placa de cartolina que dizia Porto Alegre à uns bons cem metros do pedágio, bem aonde as faixas se afunilam de volta ao normal. Estava nublado e tudo vazio nos arredores da pista. Do outro lado, o posto da polícia rodoviária federal parecia abandonado, em seguida uma casa de guincho, onde não se via ninguém. Apenas num boteco do meu lado da pista se via umas mulheres, que cortavam batatas. Eu fui lá mijar. Ia ficando tudo num semi-breu quanto mais se adentrava no lugar. Havia um balcão desses com prateleiras superiores, num grande salão. Parecia que faltava bebida nos armários, muitas lacunas entre as garrafas. As duas mulheres eram loiras parrudinhas de uns 30 anos, sorrimos e voltei pra estrada. Acho que demorou em torno de meia hora pra um furgãozinho branco todo arrebentado parar e me levar. Era um senhor de uns 50 anos, mas que a palavra “senhor” lhe soa muito mal: bem magro assim como eu, com jeito de rapaz quando se expressa; na verdade pra mim é difícil descrevê-lo. Entre outras coisas ele me causou impressão semelhante ao meu pai, no jeito melancólico e ao mesmo tempo enérgico que combatem entre si, vencendo uma espontaneidade ingênua, mas bem sofrida, como se só lhe restasse o osso. Eu devia ter anotado o nome de todos os seis que me deram carona nesse dia, pois agora me vem o nome apenas desse primeiro, era Luiz. O cabelo era já grisalho, o rosto cheio de rugas, cansado, onde só sobrou um garoto ou o esqueleto da força de um garoto. Os olhos se arregalavam bem vivos, embora as pálpebras se contraíssem pra baixo, como se aflitas. Ele ia a Criciúma, era um bom trecho.

- Quando vi lá do pedágio, eu disse vou dar carona pra aquele cara, nem sabia quem era, mas ia dar. Me disse isso não sem entusiasmo logo que entrei. Tinha ido até ali só pra verificar e resolver um problema em relação às entregas de sua fábrica, estava louco pra chegar em casa.

- Você teve sorte, porque eu não ando dando carona, e to morrendo de pressa. Luiz tinha uma fábrica de pregos, também mexia com sucata. Tinha comprado uma máquina a pouco, e havia um problema com a matriz, que nem uma viagem a São Paulo resolvera o problema. Queria agora alguém pra desenhar o prego, com as medidas e tudo, pra poder mandar por e-mail. Mais adiante na viagem, me contou que desejava achar um jeito de reaproveitar o arame que vai dentro do pneu. Disse-me que já estava velho, mais ainda queria inventar uma máquina que fizesse isso.

No trevo de Criciúma peguei uma bem diversa. Dessa vez um carro grande importado, que eu não imaginaria que parasse. Por volta dos 40 anos, cabelo ralo. Não ia muito mais, só até Araranguá, onde morava. Estivera ali visitando o pai na UTI, que acabara de remover um câncer da cabeça e contava 85 anos. A conversa ia e vinha descontínua, às vezes um pouco disparatada. Ele parecia estar muito tranqüilo. Nota para um saquinho de amendoim temperado que comi inteiro, delicioso.

Quando cheguei em Araranguá era meio dia. Eu já havia estado ali dois anos antes tentando carona, mas na direção contrária. Agora, fora a mais rápida que peguei, em menos de dois minutos, e novamente um homem pra cima dos quarenta. Esse fora policial federal por concurso, eventualmente era motoqueiro e viajante. Falava olhando reto, sempre vidrado na estada, usava uns óculos de lente grossa, mal deve ter me visto. O sotaque gaúcho era forte e veloz, atropelando as palavras; soltava “tchê” a todo momento. Várias vezes me segurei pra não rir e em outras não me segurei. Sacou um mapa do Rio Grande do porta luvas e discutimos qual seria o melhor ponto pra mim pedir a próxima carona. Estávamos em Torres, agora eu tinha a opção de pegar a litorânea ou continuar na 101. Continuei ali mesmo. Passavam poucos carros e minha cartolina já dava sinais de maus tratos. Cada vez que passava um caminhão, uma rajada de vento amassava ela toda.

Um comentário:

  1. terminei de ler com um sorriso torto no rosto. a invejinha e a sua frase "não sinta, porque estou mal".

    ResponderExcluir