Fragmentos sobre o movimento

IX

A fachada do hotel era alaranjada, as janelas todas de venezianas fechadas. Era por volta das cinco horas quando toquei a campainha, e ouvi barulho vindo da janela mais próxima. A porta entreabriu-se e um velho calvo de pele queimada com barba por fazer se inclinou pra fora com os olhos semi-cerrados como se a luz do dia doesse-lhe a vista. Ali mesmo era o hotel, perguntei. Eupídio então voltou-se para a pequena escrivaninha atrás de duas poltronas velhas verde limão, cheia de papéis e cadernos usados. Perguntou meu nome, e em seguida me pediu licença e saiu. Voltou com os óculos, estava de meias e o cinto desafivelado pendia no ar. Depois de anotar meu nome fitou o painél onde estavam as chaves dos quartos por um longo momento, até que retirou a número 12.

Agora de chinelos, Eupídio ia na frente me guiando por um corredor escuro. Resmungou uma pergunta sobre a chuva e eu disse que a pouco estivera chovendo. “é uma merda”, resmungou com sigo mesmo, e nós agora viamos o chão do corredor sujo, marcado por passos de barro. A luz iluminou tudo e depois o velho virou a direita a céu aberto, num quintal enlamaçado. Resmungou novamente, certamente algo sobre a longa tábua de madeira que nos permitia atravessar o lago de lama até um novo corredor, onde encontrava-se o quarto número 12. Eram 20 reais com café da manhã. O lugar era sinistro. Primeiro sinal evidente, a idade que pesava ali. As lajotas da pia do quarto, o chão de madeira em mosaico, parecia um origami, as cortinas expessas e pesadas, as cobertas morrom com antigos bordados, a roupa de cama áspera. O lugar era gelado, tudo que eu tocava estava frio; a pequena janela, virada para os fundos, de forma que nunca batia sol direto. Corri a cortina para o lado e abri a janela. Batia vento forte, uivava, e se via um paiol de madeira, tralhas aleatórias velhas pelo quintal. Deitei na cama fria, olhei pro teto, imediatamente o cheiro de coisa velha trouxe-me a lembrança da antiga casa da minha vó. Há um cheiro característico em casas velhas, tapetes velhos, e principalmente cobertas velhas.

Era uma cidade muito pequena, a rodoviária um saguão que poderia ser de uma estação de trêm de 1920. Ia dar um cochilo e depois dar uma volta, mas acabei capotando forte. No meio da madrugada vi a luz do corredor se ascender e ouvi mulheres conversando, e fazia tanto frio que tive de pegar mais uma das cobertas pré históriacas no armário. Além da minha havia outra cama, e entre elas um pequeno criado mudo, com uma gaveta. Abri-a curioso. Havia um cinzeiro de vidro azulado e mais nada. Como já tinha dormido muito, acordei muito de noite, me espantou como o quarto estava branco, meus tênis jogados pelo tapetinho antigo reluziam esbranquiçados, a lua era cheia. Até peguei minha câmera pra ver se captava alguma luz da lua, mas nada, tudo preto. Quando peguei no sono de novo, tive alguns pesadelos, mas nada aterrorizante: senti presenças de gente estranha, visões de homens e mulheres. No dia anterior, entretido com a singularidade do lugar, tinha divagado bastante sobre tudo que houvera se passado ali, as energias que aquelas paredes antigas poderiam ter conservado. Sonhando, dei corpo pras fantasias, foi como se sentisse na pele os fantasmas. Essa idéia me ocorria no meio do sono, que aliás era um tanto lúcido, do qual me recordo bem, e então me espantava e alimentava as idéias por curiosidade. Em algum momento, me veio a imagem, ou melhor dizendo, não imagem física, mas a imagem da presença dela, algo abstrato, mas forte o bastante pra me trazer a certeza de que era uma mulher; e tendo lúcido a consciência que sonhava, decidi beijá-la, quando então senti muito forte em meus lábios os lábios dela. O beijo era gelado e tão real, que num esforço de toneladas emergi do sono de propósito e acordei, tanto foi o espanto. Não demorou dormi novamente e várias vezes tive sonhos muito parecidos, lúcidos, extremamente sensitivos, os quais em momentos muito angustiantes eu acordava à força.

Dormi e dormi, mais e mais, acordando embriagado de sono, olhando ao relógio e capotando novamente. Eu dormiria ainda mais se não tivesse que tomar o café e zarpar daquela cidade sinistra o mais rápido possível. Da mesma forma como ficamos acordados por muito tempo e perdemos o sono, acontece também o contrário, ao embalar-se muito sono parece que um céu desabou em cima do corpo. Andando por aquelas ruas mais tarde a caminho da estrada, me vi doido pra ir embora a qualquer custo. E foi demorado, mais de uma hora até um caminhão que levava arroz para Pelótas parar. Depois iria carregar de banana e voltar pro Chuí. Num caminhão o banco é largo e dá até pra deitar, sente-se à vontade. Junto viajava outro guri, de dezoito anos, que ia a Pelotas pra fazer o exame do exército; estava ansioso e queria servir. Foi uma viagem linda, era uma reta interminável entre duas lagoas gigantes, o céu todo azul. Uma delas, a maior, é do tamanho do meu dedão no mapa do Rio Grande. Contamos umas dez capivaras mortas da estrada, o lugar era uma reserva ecológica.

Em pelotas me deixaram num ponto muito ruim da estrada. Já era quatro horas e ninguém parou até ás cinco. Entrei na cidade e peguei um ônibus até a rodoviária, deixei minha mala no guarda volume e tomei outro pro centro. Caminhei conhecendo a cidade. Sem muitos prédios, uma praça central sem iluminação. Achei um calçadão animado onde liguei pros meus pais de um orelhão. Depois entrei numa lanchonete e comi dois x- bacon com uma cerveja gelada e foi a melhor coisa do mundo.

Fragmentos sobre o movimento

VIII


caminhar depois foi dormente. Adiante, a chuva engrossou, mesmo que ainda não suficiente para encharcar. Havia um homem do outro lado da pista, parado na estrada. Mais perto vi que era um policial. Acenos de mão, silêncio, um carro a cada três minutos. Mais adiante, a chuva virou umidade, enquanto as árvores grandes, abundantes ali, pingavam muito ainda na terra. Então, um cachorro morto. Pelo castanho, as patas de trás abertas e estendidas no asfalto. Um velho andarilho em trapos, de pele queimada, calçando grandes botas pretas até quase o joelho, mancando, passou por mim resmungando e logo sumiu.


Eucalíptos de ambos os lados da estrada, segui em frente, tendo em mente que a próxima cidade era alcançável à pé. De vez em quando o portão de alguma fazenda, cachorros soltos. Passara a ressaca da moto.

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VII

No trêm que peguei pra Mar Del Plata, um pequeno grupo de adolescêntes meio hippies sentaram ao meu lado. Um chico na poltrona próxima, duas chicas nas da frente. Uma delas falava muito, era gordinha e bochechuda, vestia uma linda blusa de lã marrom e branca. Eu a via bastante porque se virava pra rir e falar com o chico, diferente da outra, que parecia mais quieta. Pensei comigo mesmo: quero falar com eles, seria ótimo, estou solo como nunca. Mas fiquei me imaginando namorando a gordinha; me acomodei na poltrona e me aqueci com a paisagem. Fazia sol e frio, ainda estávamos perto de B. Aires. Na contenda íntima, corria-me o trêm. Planejava investidas com o chico, logo ao meu lado, enquanto fitava a janela concentrado, curioso pelo que diziam, as duas se levantaram e foram, e o chico me tocou no ombro: “queres fumar?”, fazendo o gesto maconheiro que reconheci entusiamado. Ficamos entre os vagões, conversando alto devido ao barulho forte e constante do trêm. Mais tarde eles trouxeram dois tambores grandes, um deles era um caron, daqueles que agente senta em cima, e também uns chocalhos feitos por eles mesmos. A outra menina acabara de se formar em agronomia; tinha o cabelo preto curto e liso, olhos grandes e verdes, vestia uma blusa de flanela. A gordinha me disse pra eu me pendurar pra fora e gritar com toda força. “Te descarega todo”. Devia ser o começo da tarde, o vento corria gelado e espesso, e sempre a planíce na minha frente. Lá pendurado, a voz parecia afogada pelo vento, e com aquela barulhera toda teu grito mais forte ninguém ouvia.

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VI

Da beira da proa avisto um barco. Neblina nos protege. A calmaria predomina, não há vento, sendo que navegar torna-se lento. Muita atenção na última novidade, os tripulantes todos concentrados, afinando os olhos a ver o outro. Bem onde a neblina fecha seu cerco ao redor de nós ele aparece em parte, de perfil. Silêncio na beira da desconfiança e da afinidade. No mastro ao longe, deviam ser quase50 milhas, vela branca se confundia à neblina, enrugava-se com a falta de vento e tinha evidências de um rasgo no canto inferior, faltava-lhe um bom pedaço. Sendo assim, minha dúvida flutuava débil sobre se seriam piratas ou gente amiga. Houvera grande tempestade na semana anterior e a ressaca ainda se via por aqueles mares do sul, exatamente na rota de onde esperávamos encontrar uma caravela aliada que retornava de uma batalha com rebeldes das ilhas rochosas.

Alguns dos nossos ousavam já brandar saudações, elas ecoavam alto na calmaria. Mas logo silenciavam, vendo que outros checavam seus rifles e iam pegar espadas no convés. Diria meu companheiro que havia piratas naquela região, onde era abundante caminhos difíceis de bahias pequenas e archipélagos rochosos. A cada movimento do barco ao longe uma nova suspeita, novo reconhecimento de algum detalhe familiar.

Não estariam eles nos vendo também?, espreitavam os marujos estáticos na ponta da proa. O fato é que se percebia claramente a espessa neblina que nos envolvia. Mas se percebia a espessa neblina lá também, do mesmo modo, pairando em movimento com a leve brisa do norte.

Por um momento, bateu um vento maior e os dois encarregados de armar a vela, de pronto se dirigiram ao comandante qual seria a decisão. Estamos muito longe, mas com a nova ajuda do vento conseguiremos muito bem chegar em distância boa pra bombardeios de canhão, aliás, calculou o tripulante pensativo, o tempo da vela era tempo bom pra carregar a munição e preparar a pólvora que haviamos adquirido a pouco. Deixando dois com terrível ansiedade, o comandante deu a ordem para aguardar mais averiguações sobre o outro barco. "Mandemos então um bote de reconhecimento, seremos rápidos e cautelosos". Respondeu o da vela. "Não", disse firme o comandante. "Se eles ainda não nos viram, não quero que saibam de nós pelo máximo de tempo possível".

"Mas senhor", interrompeu outro tripulante, "com o vento a neblina escasseia, facilitando-lhes a nossa vista". " E esse vento não durara muito, é bom aproveitar pra se aproximar e já ir preparando os canhões".

O comandante ao meu lado ficou em silêncio, eu o conhecia bem e via que estava realmente em dúvida. Nessa hora houve certa agitação em todos, à favor de não demorar o ataque. Corria todo tipo de boato sobre os piratas daquela região, de como eram cautelosos e tinham táticas de aparentar navios debilitados ou fantasmas para depois bombardear quem vier ajudar. Na ausência de comando temporária, tão imerso em concentração estava o capitão. Grande movimentação em preparo para o ataque se formou. Caso alguém tomasse alguma decisão sem ordem, a pena naturalmente seria dura, mas nada impedia de que ficassem apostos, a poucos movimentos de hastear a vela e carregar munição.

O outro barco ao longe havia se movimentado tanto quanto nós: muito pouco, e ainda em meio a neblina. No nosso, a vontade do ataque crescia entre nós, porém um bom grupo de dez preferia examinar o outro com longas lunetas, pois, com certeza habitava todos nós a incessante idéia de que poderia ser o barco aliado.

O da vela retornou a onde estávamos, eu e o comandante. Eu e ele não haviamos trocado uma só palavra, mas pressentiamos que ambos acreditávamos num movimento do outro que daria claras evidencias da situação em alguns segundos. Ao fundo, alguns bradavam alto perguntas, gritando, mas eram quase 50 milhas. Ao se aproximar do comandante, falou baixo "Você sabe porque os homens estão assim. Não fosse o rombo na traseira do casco a situação não seria urgente. Todos já sabem".

"Sim, aportaremos o mais breve possível, mas realmente acredito que não nos viram, é o que parece. Se forem inimigos, evitaremos uma batalha."
"Nesse caso, se nos viram só podem ser inimigos, caso contrário viriam ao nosso encontro".
"Podem estar a espera, como nós".
"Por Deus, comandante! Nossos amigos devem estar morrendo de fome, vão mal, já teriam dado algum sinal". O comandante pareceu convencido por um momento. Olhou para mim e perguntou-me o que eu achava.

"Esperaremos mais um pouco. Não há razão para pânico". Eu era o 2º comandante e fui atendido. O barco à distância se movimentou para leste, muito devagar, e por um par de minutos o silêncio retornou. Inclinou-se a proa então em direção ao céu e assistimos todos a um belo naufrágio.


Ansiedade, desejo, medo do outro. Medo, tamanho e inexplicável. Porque medo, justamente, medo tolo, obviamente inútil, incoerente, de costas à lucidez? Falemos então do cabelo e não da cabeça, da pupíla semente de manga e nunca do olhar. Falemos da linha, do traço e da cor, falemos então do sapato e da sola, pra ver se caminhamos por onde o pressentimento se enrosca.

Cadê meu poema, prosa imbecil, avassaladora de Cantos, entulho mal digerido em beira de rio??

Fragmentos sobre o movimento

V

Cheguei na rodoviária de Buenos Aires tremendo de frio. Caminhei até a rua Florida para trocar dinheiro, e logo estava chegando no apartamento de três quartos onde está morando o Grigoletto, na rua Tacuarí 1098. Os apartamentos aqui são antigos, tem o pé direito alto, as portas compridas. Aliás, tudo tem um jeito mais largado, os carros, as vitrines, as ruas em geral. Eu nunca tinha pensado na Latino América como me ocorre agora. Morando com o Rafael, um garoto chamado Davi que faz música na Univ. De cá me contou e tocou várias canções equatorianas (da onde ele é), e de rock argentino e latino americano em geral. É realmente um mundo de coisa, um tanto paralelo ao Brasil, que se estende da terra do fogo até o México. Uma noite ficamos com o violão enquanto a chica dele, equatoriana também e que divide seu quarto, estava toda encasacada envolta da mesa, eu só via os olhos grandes e redondos se contraindo em expressões divertidas, enquanto o cachecol lhe cobria a boca e o nariz, a toca a cabeça e as orelhas, a jaqueta abrigando as pernas magrinhas dobradas junto ao corpo encolido na cadeira. Fumei baseado também um dia e constatei que não devo mais fumar enquanto estiver aqui.

***

(...)O fato é que agora me meti numa pcuinha envolvendo contratos de aluguel e um proprietário psiquiátra nervoso. Rafael saiu pra viajar e eu fiquei aqui inicialmente até o dia 19, responsável por danos. E agora de manhã arrebentei o elástico da veneziana de plástico embutida na janela. Está muito velha, é pesada e agora fiquei sem jeito de abri-la. Combinamos que amanhã ele (proprietário) virá aqui para pintar a parede em alguns cantos e não estou disposto a discutir com ele nem pagar nada, mesmo que imbecilmente tenha tirado fotocópia de meus documentos e assinado a porra do contrado. Vou sair fora amanhã logo que amanhecer o dia com minha mochila para algum hostel barato, que tenha desayuno com medias lunas.

***


Liguei pra vários Hostels e o mais em conta que ainda tinha vagas, reservei pro outro dia. Mas ao chegar em casa trazendo um vinho, encontrei os equatorianos e o Tim (Alemão Panamense muito gente boa) bebendo e ouvindo música, e logo que a conversa fluiu pros meus problemas com a cortina eles tentaram me tranquilizar, dizendo que era um problema simples. Todavia conversamos bastante sobre várias coisas. Bebemos muito até eu sentir náuseas fortes, causa do ritmo nada usual com que estava fumando os palheiros gaúchos. Cancelei meus planos pra ver jazz ao vivo pra sair com eles, mas não deu tempo. Outras pessoas novas conversavam, haviam chego depois de eu já estar bêbado. Após um longo silêncio sentado na minha cadeira, senti que estava vindo. O colombiano me ofereceu mais vinho, e então me inclinei levando a mão na boca, deixando o primeiro lance de vômito ali, a respingar no chão da sala. No banheiro foi minha sentença. Caí meio morto na cama, ainda levantei pra vomitar mais depois.
Comi pão ao acordar e bebi muita agua. Escrevi duas ou três palavras de adeus e fui pro hostel onde fiz a reserva.

Cristo! Nunca estive tão faminto em minha vida. Agora percebo toda a força que isso gera. Te deixa super concentrado, atento. E o bom humor só vem concretizados os esforços. A mesma coisa com sexo.

Mulheres a esperar o metrô ou uma peça ou um filme, prendendo ou soltando o cabelo, são como filmes mudos, entretanto coloridos. Dando passos vagos num corredor, olhando-se no espelho. Ver um filme de que se gosta depois de muito tempo em algum plano sequência onde há cores quentes.

Gastei 50 pesos num concerto de jazz num clube chamado Notorius. Valeu a pena. O som lebrava bebop, Charlie Parker, mas era forte a mistura latino americana, de Salsa e música cubana. Algumas composições e arranjos se sobressairam. Destaque para o trompetista, que tocava com um desleixo lindo, tateando as notas como um cão arfando no calor. Quando se soltava mais, após várias frases, os sons se revigoravam, ganhavam força, mas sempre cuidadosos, procurando abrigo em sequências amorfas. O sax alto era o tipo excitado e gozador, ao modo das subidas e descidas de Byrd, já o baixo era suave e por vezes dava passos cuidadosos. Bateria e percussão exaltados, barulhentos um pouco demais para os metais, principalmente o trompete desleixado. Apesar disso batucavam super bem, procurando várias vias de contratempo.


Por vezes me sinto isolado do carisma deles; é uma solidão diferente a de falar com muitas pessoas por dia, sempre assuntos absurdamente práticos, ainda mais em outra língua.

Passei mais um dia caminhando muito, absorvendo a geografia. Rapidamente eu assimilo as linhas do metrô, o mapa do microcentro, os pontos de câmbio, direção dos bairros, devorando os tipos de pavimento, o design das placas, o tamanho das quadras, a extenção das avenidas, a forma das portas, das janelas, sacadas.

Aqui, diferente das cidaes onde não estou viajando, me encontro pelo nome das ruas.