Fragmentos sobre o movimento

III

Encostou um cara que ia até Osório ( 80km de POA), mas desconfiei de algo estranho: a mulher no banco do passageiro se inclinava de costas em direção ao banco de trás, numa posição desconfortável. Já me preparava pra recusar a carona quando vi, mesmo pelo insufilme, que a moça não fazia mais do que ajeitar as coisas pra dar lugar a mim. Era uma família; uma menina de uns cinco anos foi comigo no banco de trás. Fiquei acanhado com a situação e falei pouquíssimo a viagem toda, enquanto a criança loirinha me olhava com atenção e desatava a se mexer e falar com os pais sobre a frieira que a incomodava no minguinho do pé, ou sobre como o caminhão era lerdo e a terra era alaranjada. Informação digna de nota é que o nome da coisinha era Gabriela, nome da garota dos meus poemas que andei escrevendo a um mês atrás, e que vinha sendo uma espécie de alter-ego espiritual meu. Foi tão sincera e afetuosa a sensação durante a carona, que resultou num revertério: eu quase mudo o trajeto todo, talvez um pouco nervoso, não sabia o que dizer. Enquanto isso continuavam a conversar normalmente entre eles(Quando se está por demais amortecido e muito dentro de si, a liberdade pode causar sensações esquisitas). O cara tinha o cabelo raso e ruivo, era parrudo, falava baixo e pouco, tinha cara de polaco. Comentou que uma vez havia andado trinta quilômetros na estrada sem conseguir carona alguma.
Projeto falho também o de fotografar todas as caronas. Fico realmente encabulado de pedir uma foto. Me deixaram num pedágio antes de entrar em Osório, na entrada de uma lanchonete de estrada.

Enfim, contente por estar perto de Porto Alegre. A próxima carona foi a que deve ter rolado a melhor conversa, num carro branco de traseira comprida, e mais uma vez alguém pra cima dos quarenta. Esse fora policial militar e fazia muitos anos era bombeiro. Anotei o nome do quartel que ele comanda, fica bem na divisa de SC com RS, chama Quartel Terra de Areia, e disse ele que posso pedir pouso lá quando estiver passando. Me contou também várias histórias de viagens, primeiro a de um japonês de bicicleta que havia pedido pouso no mesmo quartel. Mais tarde, conversando com o sujeito, descobriu que a rota dele se estendia do Alaska até a Terra do Fogo, América de cabo a rabo! E tudo sempre de bicicleta, tendo patrocínios de empresas japonesas. Ainda ia escrevendo um livro durante a viagem, parece que já estivera viajando assim em outras partes do mundo. Descrevendo um pouco essa carona (queria chamar-lhe pelo nome!), mesmo estando sentado, via-se que era baxinho mas forte, do tipo atlético; cabelo quase todo branco, mas seu emblante inspirava saúde. Falava com uma firmeza boa e amigável. O papo fluia bem, via-se que se empolgava por aventuras, mas logo minha mente se cansou e tombei a cabeça no encosto do banco. A certa altura contou que tinha já escrito inteiro um projeto para realizar uma volta completa no estado do Rio Grande pelos bombeiros gaúchos, correndo o trajeto inteiro, e revezando-se em cada corpo de bombeiros pelo caminho. Se não me engano a volta toda duraria trinta dias. Seria um novo récorde no Guiness Book.

Apesar de já estar bem perto de POA, ainda havia 20 Km. Era quatro e meia, sendo que eu já ia pensando o que faria com a noite se aproximando cada vez mais. Demorou meia hora até que finalmente alguém jovem parou, indo trabalhar. Devia ter no máximo 27 anos, rosto bochechudo e redondo, um pouco infantil, olhar atento e divertido; cabelo bem alisado, curto. Vestia roupa de marca, escutava pagodão, além disso, eu já reconhecia o forte sotaque da capital. O carro era novo e ele dirigia muito rápido, mal olhava pra estrada enquanto falava comigo. Mas era um sujeito divertido, se comportava de um jeito bem vivo, nunca demonstrava tédio nas epressões do rosto. Me fez uma barbada, me largou bem perto de onde eu queria, entre o centro e a cidade baixa.

Eu tinha visto na internet que o hotel onde eu ficara da última vez era na Riachuelo e foi assim que orientei a carona pra me deixar num lugar razoável. Mas me enganei, e justo no caminho até a Riachuelo é que encontrei por acaso o tal hotel. O nome é “Casa do Estudante”. Apertei a campainha e ouvi barulho de jogo na tevê. Assim que subi as escadinhas, ouvi um “Ah, agora não!”. Uruguay e Alemanha disputavam o terceiro lugar da copa e o cara da recepção era Uruguaio. Deixei minhas coisas no quarto n25, o penúltimo do longo e estreito corredor do segundo andar, e sai pra dar uma volta, ver ainda o fim do dia na cidade. Caminhei por um longo trecho na Rua Gen. Lima e Silva, na cidade baixa, parando na volta pra comprar comida e tomar um caneco e chopp, até que, enfim no quarto, capotei.

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