Fragmentos sobre o movimento

V

Cheguei na rodoviária de Buenos Aires tremendo de frio. Caminhei até a rua Florida para trocar dinheiro, e logo estava chegando no apartamento de três quartos onde está morando o Grigoletto, na rua Tacuarí 1098. Os apartamentos aqui são antigos, tem o pé direito alto, as portas compridas. Aliás, tudo tem um jeito mais largado, os carros, as vitrines, as ruas em geral. Eu nunca tinha pensado na Latino América como me ocorre agora. Morando com o Rafael, um garoto chamado Davi que faz música na Univ. De cá me contou e tocou várias canções equatorianas (da onde ele é), e de rock argentino e latino americano em geral. É realmente um mundo de coisa, um tanto paralelo ao Brasil, que se estende da terra do fogo até o México. Uma noite ficamos com o violão enquanto a chica dele, equatoriana também e que divide seu quarto, estava toda encasacada envolta da mesa, eu só via os olhos grandes e redondos se contraindo em expressões divertidas, enquanto o cachecol lhe cobria a boca e o nariz, a toca a cabeça e as orelhas, a jaqueta abrigando as pernas magrinhas dobradas junto ao corpo encolido na cadeira. Fumei baseado também um dia e constatei que não devo mais fumar enquanto estiver aqui.

***

(...)O fato é que agora me meti numa pcuinha envolvendo contratos de aluguel e um proprietário psiquiátra nervoso. Rafael saiu pra viajar e eu fiquei aqui inicialmente até o dia 19, responsável por danos. E agora de manhã arrebentei o elástico da veneziana de plástico embutida na janela. Está muito velha, é pesada e agora fiquei sem jeito de abri-la. Combinamos que amanhã ele (proprietário) virá aqui para pintar a parede em alguns cantos e não estou disposto a discutir com ele nem pagar nada, mesmo que imbecilmente tenha tirado fotocópia de meus documentos e assinado a porra do contrado. Vou sair fora amanhã logo que amanhecer o dia com minha mochila para algum hostel barato, que tenha desayuno com medias lunas.

***


Liguei pra vários Hostels e o mais em conta que ainda tinha vagas, reservei pro outro dia. Mas ao chegar em casa trazendo um vinho, encontrei os equatorianos e o Tim (Alemão Panamense muito gente boa) bebendo e ouvindo música, e logo que a conversa fluiu pros meus problemas com a cortina eles tentaram me tranquilizar, dizendo que era um problema simples. Todavia conversamos bastante sobre várias coisas. Bebemos muito até eu sentir náuseas fortes, causa do ritmo nada usual com que estava fumando os palheiros gaúchos. Cancelei meus planos pra ver jazz ao vivo pra sair com eles, mas não deu tempo. Outras pessoas novas conversavam, haviam chego depois de eu já estar bêbado. Após um longo silêncio sentado na minha cadeira, senti que estava vindo. O colombiano me ofereceu mais vinho, e então me inclinei levando a mão na boca, deixando o primeiro lance de vômito ali, a respingar no chão da sala. No banheiro foi minha sentença. Caí meio morto na cama, ainda levantei pra vomitar mais depois.
Comi pão ao acordar e bebi muita agua. Escrevi duas ou três palavras de adeus e fui pro hostel onde fiz a reserva.

Cristo! Nunca estive tão faminto em minha vida. Agora percebo toda a força que isso gera. Te deixa super concentrado, atento. E o bom humor só vem concretizados os esforços. A mesma coisa com sexo.

Mulheres a esperar o metrô ou uma peça ou um filme, prendendo ou soltando o cabelo, são como filmes mudos, entretanto coloridos. Dando passos vagos num corredor, olhando-se no espelho. Ver um filme de que se gosta depois de muito tempo em algum plano sequência onde há cores quentes.

Gastei 50 pesos num concerto de jazz num clube chamado Notorius. Valeu a pena. O som lebrava bebop, Charlie Parker, mas era forte a mistura latino americana, de Salsa e música cubana. Algumas composições e arranjos se sobressairam. Destaque para o trompetista, que tocava com um desleixo lindo, tateando as notas como um cão arfando no calor. Quando se soltava mais, após várias frases, os sons se revigoravam, ganhavam força, mas sempre cuidadosos, procurando abrigo em sequências amorfas. O sax alto era o tipo excitado e gozador, ao modo das subidas e descidas de Byrd, já o baixo era suave e por vezes dava passos cuidadosos. Bateria e percussão exaltados, barulhentos um pouco demais para os metais, principalmente o trompete desleixado. Apesar disso batucavam super bem, procurando várias vias de contratempo.


Por vezes me sinto isolado do carisma deles; é uma solidão diferente a de falar com muitas pessoas por dia, sempre assuntos absurdamente práticos, ainda mais em outra língua.

Passei mais um dia caminhando muito, absorvendo a geografia. Rapidamente eu assimilo as linhas do metrô, o mapa do microcentro, os pontos de câmbio, direção dos bairros, devorando os tipos de pavimento, o design das placas, o tamanho das quadras, a extenção das avenidas, a forma das portas, das janelas, sacadas.

Aqui, diferente das cidaes onde não estou viajando, me encontro pelo nome das ruas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário