Fragmentos sobre o movimento

VI

Da beira da proa avisto um barco. Neblina nos protege. A calmaria predomina, não há vento, sendo que navegar torna-se lento. Muita atenção na última novidade, os tripulantes todos concentrados, afinando os olhos a ver o outro. Bem onde a neblina fecha seu cerco ao redor de nós ele aparece em parte, de perfil. Silêncio na beira da desconfiança e da afinidade. No mastro ao longe, deviam ser quase50 milhas, vela branca se confundia à neblina, enrugava-se com a falta de vento e tinha evidências de um rasgo no canto inferior, faltava-lhe um bom pedaço. Sendo assim, minha dúvida flutuava débil sobre se seriam piratas ou gente amiga. Houvera grande tempestade na semana anterior e a ressaca ainda se via por aqueles mares do sul, exatamente na rota de onde esperávamos encontrar uma caravela aliada que retornava de uma batalha com rebeldes das ilhas rochosas.

Alguns dos nossos ousavam já brandar saudações, elas ecoavam alto na calmaria. Mas logo silenciavam, vendo que outros checavam seus rifles e iam pegar espadas no convés. Diria meu companheiro que havia piratas naquela região, onde era abundante caminhos difíceis de bahias pequenas e archipélagos rochosos. A cada movimento do barco ao longe uma nova suspeita, novo reconhecimento de algum detalhe familiar.

Não estariam eles nos vendo também?, espreitavam os marujos estáticos na ponta da proa. O fato é que se percebia claramente a espessa neblina que nos envolvia. Mas se percebia a espessa neblina lá também, do mesmo modo, pairando em movimento com a leve brisa do norte.

Por um momento, bateu um vento maior e os dois encarregados de armar a vela, de pronto se dirigiram ao comandante qual seria a decisão. Estamos muito longe, mas com a nova ajuda do vento conseguiremos muito bem chegar em distância boa pra bombardeios de canhão, aliás, calculou o tripulante pensativo, o tempo da vela era tempo bom pra carregar a munição e preparar a pólvora que haviamos adquirido a pouco. Deixando dois com terrível ansiedade, o comandante deu a ordem para aguardar mais averiguações sobre o outro barco. "Mandemos então um bote de reconhecimento, seremos rápidos e cautelosos". Respondeu o da vela. "Não", disse firme o comandante. "Se eles ainda não nos viram, não quero que saibam de nós pelo máximo de tempo possível".

"Mas senhor", interrompeu outro tripulante, "com o vento a neblina escasseia, facilitando-lhes a nossa vista". " E esse vento não durara muito, é bom aproveitar pra se aproximar e já ir preparando os canhões".

O comandante ao meu lado ficou em silêncio, eu o conhecia bem e via que estava realmente em dúvida. Nessa hora houve certa agitação em todos, à favor de não demorar o ataque. Corria todo tipo de boato sobre os piratas daquela região, de como eram cautelosos e tinham táticas de aparentar navios debilitados ou fantasmas para depois bombardear quem vier ajudar. Na ausência de comando temporária, tão imerso em concentração estava o capitão. Grande movimentação em preparo para o ataque se formou. Caso alguém tomasse alguma decisão sem ordem, a pena naturalmente seria dura, mas nada impedia de que ficassem apostos, a poucos movimentos de hastear a vela e carregar munição.

O outro barco ao longe havia se movimentado tanto quanto nós: muito pouco, e ainda em meio a neblina. No nosso, a vontade do ataque crescia entre nós, porém um bom grupo de dez preferia examinar o outro com longas lunetas, pois, com certeza habitava todos nós a incessante idéia de que poderia ser o barco aliado.

O da vela retornou a onde estávamos, eu e o comandante. Eu e ele não haviamos trocado uma só palavra, mas pressentiamos que ambos acreditávamos num movimento do outro que daria claras evidencias da situação em alguns segundos. Ao fundo, alguns bradavam alto perguntas, gritando, mas eram quase 50 milhas. Ao se aproximar do comandante, falou baixo "Você sabe porque os homens estão assim. Não fosse o rombo na traseira do casco a situação não seria urgente. Todos já sabem".

"Sim, aportaremos o mais breve possível, mas realmente acredito que não nos viram, é o que parece. Se forem inimigos, evitaremos uma batalha."
"Nesse caso, se nos viram só podem ser inimigos, caso contrário viriam ao nosso encontro".
"Podem estar a espera, como nós".
"Por Deus, comandante! Nossos amigos devem estar morrendo de fome, vão mal, já teriam dado algum sinal". O comandante pareceu convencido por um momento. Olhou para mim e perguntou-me o que eu achava.

"Esperaremos mais um pouco. Não há razão para pânico". Eu era o 2º comandante e fui atendido. O barco à distância se movimentou para leste, muito devagar, e por um par de minutos o silêncio retornou. Inclinou-se a proa então em direção ao céu e assistimos todos a um belo naufrágio.


Ansiedade, desejo, medo do outro. Medo, tamanho e inexplicável. Porque medo, justamente, medo tolo, obviamente inútil, incoerente, de costas à lucidez? Falemos então do cabelo e não da cabeça, da pupíla semente de manga e nunca do olhar. Falemos da linha, do traço e da cor, falemos então do sapato e da sola, pra ver se caminhamos por onde o pressentimento se enrosca.

Cadê meu poema, prosa imbecil, avassaladora de Cantos, entulho mal digerido em beira de rio??

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